A reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) divulga uma nota para se posicionar sobre o Projeto de Lei /PL n.º 1904 de 2024, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, em regime de urgência. A nota traz argumentações relativas às intenções dos legisladores de criminalizar as vítimas de crimes de estupro, conferindo penas de até 20 anos de prisão. Leia a íntegra da nota:
Nota da UFRJ sobre ao Projeto de Lei n.º 1904 de 2024, em tramitação no Congresso Nacional
A Reitoria da UFRJ vem a público manifestar sua profunda preocupação em relação ao Projeto de Lei /PL n.º 1904 de 2024, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, em regime de urgência. Trata-se de nova norma legal que equipara o aborto realizado após a vigésima segunda semana de gestação ao crime de homicídio simples, com pena de seis a vinte anos de prisão. Assim cabe considerar:
I Do ponto de vista ético vale questionar o que o legislador quer proteger.
1. A vida humana desde a concepção, sustentada por uma crença ou visão religiosa? Parece que NÃO, porque não haveria diferença moral entre o concepto de 4 semanas ou 23 semanas de gestação. Além disso, como um argumento baseado em qualquer crença ou religião, não pode encontrar acolhida em um Estado laico, numa sociedade democrática e pluralista, fundamentada na convivência de múltiplas comunidades morais. A Universidade, como lócus da diversidade e da defesa do conhecimento científico e da laicidade não pode deixar de se pronunciar.
2. Proteger a vida humana a partir do momento em que o feto tem, teoricamente, viabilidade? Aqui temos que considerar que um feto de 22 semanas só tem condições de viver fora do útero materno com muita intervenção tecnológica. Afinal de que viabilidade se está falando? Um feto de 22 semanas não se equipara a uma criança que acaba de nascer para uma vida independente do útero materno.
II Quando trata do estupro, o efeito principal dessa da lei, caso seja aprovada e sancionada, seria obrigar uma menina ou uma mulher a levar a termo a gravidez de seu agressor, tornando letra morta a possibilidade de interrupção da gravidez na condição de estupro já garantida em lei. Nenhuma mulher ou menina espera até a 22ª semana para decidir interromper a gravidez consequente a um estupro. As barreiras interpostas ao acolhimento digno são muitas e pospõem o procedimento até que se chegue a 22 semanas ou mais. É sabido que a atenção às situações de aborto previstas na legislação brasileira ainda é insuficiente para garantir que a interrupção da gestação aconteça estritamente no tempo de 22 semanas, e o projeto de lei apresenta como alternativa mais uma punição às crianças, adolescentes e mulheres já penalizadas por sua condição. O PL, portanto, não encontra sustentação ética por atentar contra a garantia dos direitos reprodutivos duramente conquistados. Deve ser arquivado de imediato. Aqui devemos reafirmar que não cabe esse retrocesso.
III. Ao contrário de perseguir crianças, adolescentes, adolescentes e mulheres que necessitam do aborto legal e punir profissionais de saúde que as acolhem e delas cuidam com respeito, dentro das normas éticas, e seguindo protocolos médicos que asseguram a realização do aborto de forma segura, deveríamos estar preocupados e mobilizados no enfrentamento da violência sexual como marca estrutural da sociedade brasileira.
A Universidade Federal do Rio de Janeiro faz um chamamento a toda a sociedade civil brasileira, que despertou para o tema suscitado pelo PL n.º 1904 de 2024, para que a reflexão sobre o aborto legal ocupe cada roda de conversa e cada fórum de decisão pelo país. Temos uma dívida com as nossas crianças, adolescentes e mulheres. Elas precisam ter direito à alegria da infância, da juventude e de ser mulher; ao estudo; a planos de futuro e, fundamentalmente, a determinar sobre seus próprios corpos e resolver que desenho familiar é o seu. A hora é agora.