A reitora da UFRJ, Denise Pires de Carvalho, escreveu artigo no jornal O Globo, publicado nesta quarta-feira, 21/12, intitulado “Vacina contra a indiferença”.
Leia o artigo na íntegra:
Inúmeros dados demonstram de maneira inequívoca que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, embora seja difícil nos conscientizarmos disso. A erradicação da pobreza é o primeiro dentre os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, aprovados pela Organização da Nações Unidas. Nas grandes cidades brasileiras, a desigualdade social se torna ainda mais evidente, e o grau de pobreza é alarmante.
Recentemente, durante um passeio de fim de semana, tive uma das experiências mais impactantes que já vivenciei. A cidade de São Paulo é uma megalópole com tanta riqueza quanto desigualdade. Passeando a pé pela região dos Jardins, área nobre, encontrei muitas famílias (jovens, velhos e crianças) morando nas ruas, deitadas no chão, vivendo em tendas ou dormindo ao relento.
O que podemos esperar dessa geração abandonada pelo Estado brasileiro? Sabemos que o futuro se constrói no presente, mas vejo pouca ou nenhuma perspectiva razoável para essas crianças que deveriam estar sendo muito bem cuidadas no presente para garantirmos uma sociedade menos desigual no futuro, o alicerce de uma nação desenvolvida e com mais segurança no nosso cotidiano. Testemunhei o oposto, o abandono da cidade e do seu povo.
Fiquei pasmada ao perceber que também havia no meu caminho, numa das avenidas dessa área nobre, várias pessoas e famílias inteiras sentadas em cadeiras de praia nas calçadas, por opção, assistindo e filmando os carros importados que passavam naquela tarde. Eu me senti muito mal, porque, afinal, aquelas pessoas saíram das suas respectivas casas com o objetivo de ver os carrões que haviam se transformado em atração de domingo. Deixaram de se preocupar com as outras; estavam mais interessadas nos bens materiais. Não pareciam enxergar as famílias abandonadas vagando pela cidade, que, aparentemente, se tornaram invisíveis e inaudíveis. Estavam atentas apenas ao ronco dos poderosos motores. Que sociedade é esta?
Na vida real, precisaríamos seguir cada vez mais atentos e engajados na melhoria da qualidade de vida dos povos, embora não seja nada fácil, principalmente nestes tempos inéditos e distópicos. Certamente a pandemia aumentou a enorme distância entre as classes sociais, agravou a pobreza e promoveu o rompimento do nosso já esgarçado tecido social. Considero a compreensão do comportamento humano um dos temas mais instigantes da atualidade. Talvez a falta de empatia seja uma das características mais deploráveis da humanidade, o que nestes tempos pandêmicos se tornou ainda mais perceptível.
Especialmente neste momento, deveríamos aproveitar para refletir sobre como evitar retrocessos sociais e ambientais inadmissíveis para garantirmos um futuro melhor aos nossos descendentes. A espécie humana deveria questionar mais seus instintos predatórios e inconsequentes sobre a natureza de maneira geral, o que ocasiona acúmulo de riqueza associado a mudanças climáticas irreversíveis.
Afinal, dependemos do planeta saudável para que a perpetuação da nossa espécie não seja ainda mais ameaçada. Portanto há necessidade de prevenção contra esse instituto humano avassalador que corrói as relações humanas em todos os espectros, ou seja, precisamos muito de “vacinas”, mas não somente contra as doenças provocadas por vírus. Precisamos nos vacinar contra os males característicos de alguns seres humanos, como a soberba, a intolerância, a ganância e a falta de solidariedade e de compaixão. Somente assim poderemos construir a verdadeira sociedade do conhecimento, formada por pessoas com mais empatia e respeito ao outro e ao meio ambiente. É também desse tipo de vacina que a humanidade mais está precisando neste século. A vacina contra a insensatez.
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